domingo, 29 de julho de 2012

Não encontrei o mar revolto em Pessoa, mas vi em Hilda Hilst seu jeito destemido de ser tão obscena e obcecada. Não fui moça casadoira como Adélia Prado, eu me inseri na babilônia da lascívia de Anais Nin, entre a loucura, a delícia e a razão fantasiada. Eu quis salvar a vida de Ana C. que virou passarinho em Manoel de Barros. Estive com Clarice, Caio e Mia Couto, mas quis que Guimarães me amasse qual neblina Diadorim: faltou meu Riobaldo, um rio nosso, terra seca e a boca molhada de neologismos pra mulher amada.
(Fui quase injusta em desejar que as coisas tivessem sempre um real tamanho, que as fomes fossem saciadas sempre pelo melhor gosto, que a chuva só desabasse em tempos de matar a sede.) Tranquei meus dias ruins nas cores de um Miró aceso. Fui tão constrangedora não sendo infeliz como escritora, preferindo de qualquer maneira a incerteza da existência da verdade inteira. Se quase sucumbi num poço de tristeza, me reergo até hoje, constante e amiúde, fazendo o meu melhor_ fiz o maior que pude. Mas não me preservei: ainda sou lanhada pelos galhos de matas fechadas que são o meu altar, minha estrada.
Engulo o amargo da saudade sem fazer careta, absorvo o azedo da rejeição sem me achar menor, abro os braços para a escuridão contando estrelas, gasto cada gota de suor e sangue nas minhas entregas. E não economizo gargalhadas, mas pago o preço alto do inconveniente de viver no mundo paralelo e metafísico onde vivem as palavras.
Estive em muitas páginas. Grifei muitos parágrafos. Sorvi tantas inglórias e orgasmos e vitórias.
E estive com você além de mim. Fui burra, mas foi bom. Fui pura, mas fui tola. E toda a malícia vinda na hora inadequada me fez desconfiada por tudo, por nada.
Eu tenho um jeito enorme de amar pra sempre, mas sou desajeitada.
Eu tenho um jeito imenso de ser comovente, mas sempre concluo as histórias na hora errada.

Marla de Queiroz

terça-feira, 24 de julho de 2012

ALICE NO PAIS DAS MARAVILHAS
Uma Possível Leitura Psicológica
Por  ELIANE DE ALMEIDA – Psicóloga
O filme é baseado na obra de Lexis Carrol
O simbolismo mágico contido nos personagens dos contos de fadas possui um poder inebriante em nossos psiquismos. Remete-nos aos nossos subterrâneos numa viagem única de valor inestimável. Uma alquímica mistura de imaginação e fantasia que traz em seu bojo, partes de um todo de nossa identidade, a ser restaurado e conquistado. Essa tarefa inusitada e necessária em nossas vidas é totalmente solitária, como a da nossa heroína. Potencialidades inatas de ALICE, como coragem, ousadia, curiosidade, sensibilidade perceptiva, astúcia e confiança em sua diferença, são ingredientes do tom alquímico, responsável pelo processo de transformação que nossa heroína vivencia. Ao final deste grandioso processo de crescimento, onde logrou integrar de forma harmoniosa, as  partes de seu todo, sai vitoriosa, independente, livre e diferente.  Assim sendo, pode colocar-se na vida com a sábia função de APRENDIZ.
ALICE CRIANÇA -  Alice criança surge com uma imagem etérea, frágil, próxima a de  um EXTRATERRESTRE, um tanto quanto fantasmagórica. Evidencia uma expressão cansada e com olheiras. Aqui está a representação de sua CRIANÇA FERIDA. Encontra-se já mergulhada no mundo inconsciente. Perturbada pelos “pesadelos”, que representam suas primeiras incursões ao seu inconsciente. Depara-se com personagens internos que não pode ainda decifrar. O gato que ri; o coelho vestido; a lagarta azul.
Perturba-se com a confusão ao ponto de sentir-se “maluca”. Encontra no seu pai biológico, o reforço na sua função PARENTAL POSITIVA     DE ORIENTAÇÃO INCONSCIENTE. Este envia mensagem de permissão positiva e acolhimento sábio, dos conteúdos estranhos de seu inconsciente  ainda indecifráveis. A frase: ( Você pode estar louca, lunática, maluca,mas os loucos são as melhores pessoas.); contem uma permissão de poder transformador incalculável, com repercussão vitalícia.
ALICE ADOLESCENTE – Imagem ainda etérea, cansada, frágil, porém, já demonstra algumas pontuações e força ADULTA. Com a morte do pai, encontra-se na companhia da mãe que faz a função PARENTAL DE ORIENTAÇÃO CONSCIENTE. A entrega do colar sela este acordo de Adaptação Consciente ao meio. Porém, ALICE recebe aí a tarefa de não sucumbir nesta Adaptação, de duas maneiras  negativas: submissa ou rebelde.
Entra no baile que a espera, já orquestrado com o Plano Argumental (Script de Vida) Social e Familiar acordado por todos, inclusive por sua mãe e irmã.  É recebida por sua pretensa sogra, com crítica PARENTAL CONSCIENTE NEGATIVA e rejeição severa.  Dançando distraída, expressa sua CRIANÇA LIVRE de forma ainda ingênua e desprotegida nas seguintes falas: “Imagino como seriam as mulheres vestidas de homens e os homens vestidos de mulheres.” “Estou imaginando como seria voar” . Recebe do pretenso noivo, que carrega em si toda a bagagem negativa dos MANDATOS SOCIAIS, já destroçado como indivíduo único, críticas negativas e rejeição à sua CRIANÇA LIVRE incauta.
No jogo social da fofoca, que controla e limita o indivíduo diferente, as gêmeas desferem seus golpes vingativos e invejosos, denunciando o PLANO ARGUMENTAL (SCRIPT DE VIDA) SOCIAL E FAMILIAR. Sua irmã aparece para ratificar e reforçar este plano, já que ele estava em pleno vapor em sua própria vida, dizendo de sua “felicidade” em cumpri-lo. “Felicidade”, em ocupar o milenar lugar destinado às mulheres em toda a história da humanidade. O lugar do ARGUMENTO BANAL, onde não vivem, apenas sobrevivem ocultas atrás da imagem do homem. Ocupando papeis muito aquém de suas reais possibilidades, SEM DIREITO À LIBERDADE E BRILHO PRÓPRIO.
ALICE então é convidada a comparecer ao coreto para receber o pedido de casamento. Ali de forma seca e lacônica recebe o pedido, provocando uma vivência de  impasse interno. Sua primeira fala é um amontoado de justificativas advindas das inadequações e não permissões do meio social. Mas, tudo isso não a convence. Alice pede um tempo e se deixa levar pelos sinais do inconsciente, que já se faziam presente no farfalhar das folhas. Logo em seguida já visualizando o COELHO-elo intuitivo para acesso ao inconsciente- que a chama e apressa apontando o relógio.  Descobre o cunhado “traidor”, e correndo para alcançá-lo, chega perto da grande árvore encontrando o buraco da toca do COELHO. Curiosa debruça-se sobre ele, que desmorona provocando sua “caída” ao inconsciente.
Sua “caída” revela todo o medo grandioso desta empreitada. Cabelos arrepiados e uma descida horripilante. Debate-se em sucessivos elementos do inconsciente. Tenta em vão  segurar-se, em meio à  cama, piano, pedras, madeiras, escuro, fundo interminável. É a sensação da queda sem controle no mundo inconsciente. Mundo este temido, desconhecido e insondável. Chega por fim ao fundo, porém ainda há mais outro fundo. Depara-se com um lugar alto, fechado com várias portas trancadas. Está numa armadilha,   sem saída dentro de si mesma. É o primeiro contato com o fato de estar absolutamente só, em seu próprio mundo simbólico.  Ali  tudo é novo e agora a tarefa de decifrar estes elementos e personagens do seu inconsciente é inadiável.
Nesta grandiosa  tarefa necessária de sua vida, tudo pode acontecer. Urge buscar saídas por todos os meios possíveis e inimagináveis. Sendo assim, acontece de tudo,  é revirada em todas as dimensões. Cresce, encolhe e descobre astutamente como resolver o enigma de sua libertação.  Enfim, descortina-se seu PAÍS INTERIOR. Um imenso horizonte a ser  desvendado.  Um mundo novo com elementos e personagens do mundo subterrâneo a serem conquistados.
Um grande conflito de identidade surge no início de sua caminhada. Será ela a verdadeira Alice? Este conflito é expresso pela mudança de tamanho. Cresce, estica, encolhe como que procurando seu “TAMANHO IDEAL”; “SEU EU IDEAL”. Quem poderá responder é aquela sua parte interna que representa a sabedoria, a LAGARTA AZUL. Sua tenacidade e capacidade de análise profunda, demonstra sensibilidade e conhecimento humano. É a manifestação de sua CRIANÇA DIVINA, aquela que tudo sabe e que tem poder restaurador e transformador. A LAGARTA AZUL,  revela então que Alice ainda  está “MENINA BURRA”. Ainda está longe de ser ela mesma. Sua luta por si mesma ainda nem haveria começado.
O GATO, sua parte felina, imortal, invejosa, esperta, má, irônica e ao mesmo tempo com tarefas que envolvem justiça e verdade  leva-a,  até ao CHAPELEIRO.
Seu encontro com o CHAPELEIRO, seu lado maluco, diferente, criativo e amorosamente irreverente, é conturbado. Sua magistral e gostosa caminhada por cima da mesa de chá, que está posta, revela sua excentricidade criativa ao quebrar o pré-estabelecido e o senso comum. Seus laços profundos se fazem de imediato, numa fusão imprescindível. Essa forte ligação determinará os passos decisivos de sua caminhada. Surge então a tarefa de desvendar o reino da RAINHA VERMELHA. A cor deste reino é vermelha, cor da paixão e do instinto. Esconde sua identidade e busca libertar o CHAPELEIRO. Ao desvendar sua parte “sombra” descobre a força do mal. Não gosta da arrogância, agressividade instintiva e autocracia desta força interior que também lhe pertence. A frase: “CORTEM-LHE A CABEÇA”,evidencia repetitivamente sua natureza sombria. Um reino de mentiras, sordidez e violência gratuita que não lhe agrada. Para sua libertação é preciso encontrar a ESPADA.
A ESPADA significará seu aporte de força, “MUITEZA”, um extraordinário instinto de luta e sobrevivência. Juntas formarão um conjunto de poder pessoal  invencível. Pois a tarefa que a espera, é grandiosa e este combate pertence somente à ela. ALICE, A ESPADA, O CHAPELEIRO, O COELHO E O GATO, agora unidos (esta união representa uma conquista de harmonização e força de partes em seu interior) irão desvendar o reino da RAINHA BRANCA. A RAINHA BRANCA, É O PURO E ETÉREO FEMININO, que fez votos de gentileza e delicadeza. Agora mais fortalecida pela união das partes internas conquistadas, ALICE entrega a ESPADA para a RAINHA BRANCA que a devolve à uma armadura. O reino MARMORIAL da RAINHA BRANCA representa o lado do bem, da luz. A cor de seu reino é a BRANCA, cor da pureza e harmonia transcendente. Instala-se então a necessária guerra entre os seus dois lados internos: a LUZ E A SOMBRA.
Porém para guerrear este bom combate interior, é preciso que haja uma decisão interna. Decisão esta que a colocará responsável por sua escolha, que poderá levá-la a ultrapassar limites pessoais extremos, como matar.  Nesta decisão consta dados muito importantes: esta é a sua luta, ninguém mais poderá realizá-la, e nela estará sozinha. Antes desta decisão ALICE consegue resolver seu conflito de identidade, voltando à seu tamanho natural. Veste então a armadura e empunha a espada, como uma grande guerreira, para guerrear seu bom combate. Seu adversário é o JAGUADARTE, o monstro predileto da RAINHA VERMELHA. Seu tamanho é muitas vezes maior que o de ALICE e seu instinto destrutivo é aterrador. Parece uma missão impossível. ALICE  precisa de força e astúcia para este combate. A astúcia busca no legado PARENTAL PATERNO desvendando seis coisas impossíveis e a força ao incorporar seu lado VERMELHO bradando “CORTEM-LHE A CABEÇA”, no momento de sua ação extrema de cortar a cabeça do monstro. Este ato de cortar a cabeça do monstro, e o afastamento da RAINHA VERMELHA para a MARGINÁLIA contêm o significado de domar seus instintos, mantê-los sob o seu desejo e controle.
Agora de posse dos seus instintos, é livre para escolher quem comandará seu reino interior. Sua escolha recai sobre a RAINHA BRANCA, lembrando que esta tem sob o seu comando os dois exércitos, o BRANCO e o VERMELHO. Diante de tamanha vitória, vale também a pena salientar a “DANÇA MALUCA” do CHAPELEIRO. É uma visão prazerosamente reforçadora de nossa diferença e caráter único. Seus pés orquestrando os passos malucos e sua cabeça girando vertiginosamente sobre o pescoço, lembra-nos criativamente, a extensão ilimitada de nossas possibilidades. Nesta trajetória, de processo e guerra interior, ALICE incorporou todos os seus personagens internos, decifrando-os e tornando-se dona de todos e cada um deles. Assim crescida e vitoriosa, ALICE encontra  a LAGARTA, já em processo de transmutação.  Esta em sua sabedoria interior informa-lhe que está quase pronta, quase crescida, muito perto de  transformar-se na verdadeira ALICE. Faltam ainda alguns passos a serem trilhados. ALICE, ciente disso,  despede-se de todos, informando que precisa voltar ao consciente, pois tem que responder a algumas perguntas em seu mundo real. Ao despedir-se da LAGARTA esta diz, que talvez haja um novo encontro,  em outra vida. Triste, o CHAPELEIRO pede para que ela fique, temendo que esta o esqueça. ALICE o tranqüiliza, pois, tem firmeza em suas conquistas internas. Na despedida, o CHAPELEIRO deseja para ALICE, em sussurros, “BOAS LONJURAS”, como que num pacto íntimo, intuitivo e inesquecível entre eles.
De volta ao seu mundo consciente, ALICE já crescida e ADULTA, começa sua tarefa de enfrentamento  e respostas a muitas perguntas. Diz não ao seu pretenso noivo; enfrenta o cunhado traidor; indica tratamento para a tia enlouquecida; tranqüiliza a mãe quanto ao seu DESTINO e chama o amigo do pai para uma conversa de negócios. Sai daquele baile livre, do terrível PLANO ARGUMENTAL BANAL construído para ela. Mas, não sem antes, dançar os passos malucos da dança do CHAPELEIRO, agora, definitivamente incorporado por ela. Nesta conversa de negócios demonstra sagacidade e astúcia. Faz sugestões  além mar, muito além daquelas que ouvira do legado PATERNO. É  nomeada “APRENDIZ” na companhia que fora de seu pai. Na verdade, sua função de “APRENDIZ” NA VIDA.
O PROCESSO DE TRANSMUTAÇÃO DE ALICE ocorre em minutos. Na vida real pode demorar anos e na maioria das vezes, lamentavelmente não ocorre.
Cena final, com uma ALICE encarnada, humana, crescida, livre, diferente, única e dona de seu DESTINO, embarcada para ir muito além mar. Possui em sua fisionomia, um aspecto de luminosidade e saudável brilho próprio. Porém não está só, aparece a LAGARTA em forma de borboleta azul, ensejando um processo de transmutação constante, na  nova vida e nos novos caminhos. Realiza-se o pacto entre ALICE E O CHAPELEIRO – “BOAS LONJURAS”.
Assim, diante de tão grandiosa conquista interior de nossa heroína, que também mora em cada um de nós, só me resta sempre, sempre e todo o sempre desejar a você: “BOAS LONJURAS.”

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O Silêncio


Nós os índios, conhecemos o silêncio. Não temos medo dele. 
Na verdade, para nós ele é mais poderoso do que as palavras. 
Nossos ancestrais foram educados nas maneiras do silêncio e eles
nos transmitiram esse conhecimento. 
"Observa, escuta, e logo atua", nos diziam.
Esta é a maneira correta de viver.
Observa os animais para ver como cuidam se seus filhotes.
Observa os anciões para ver como se comportam.
Observa o homem branco para ver o que querem.
Sempre observa primeiro, com o coração e a mente quietos,
e então aprenderás.
Quanto tiveres observado o suficiente, então poderás atuar.
Com vocês, brancos, é o contrário. Vocês aprendem falando.
Dão prêmios às crianças que falam mais na escola.
Em suas festas, todos tratam de falar.
No trabalho estão sempre tendo reuniões
nas quais todos interrompem a todos,
e todos falam cinco, dez, cem vezes.
E chamam isso de "resolver um problema".
Quando estão numa habitação e há silêncio, ficam nervosos.
Precisam preencher o espaço com sons.
Então, falam compulsivamente, mesmo antes de saber o que vão dizer.
Vocês gostam de discutir.
Nem sequer permitem que o outro termine uma frase.
Sempre interrompem.
Para nós isso é muito desrespeitoso e muito estúpido, inclusive.
Se começas a falar, eu não vou te interromper.
Te escutarei.
Talvez deixe de escutá-lo se não gostar do que estás dizendo.
Mas não vou interromper-te.
Quando terminares, tomarei minha decisão sobre o que disseste,
mas não te direi se não estou de acordo, a menos que seja importante.
Do contrário, simplesmente ficarei calado e me afastarei.
Terás dito o que preciso saber.
Não há mais nada a dizer.
Mas isso não é suficiente para a maioria de vocês.
Deveríamos pensar nas suas palavras como se fossem sementes.
Deveriam plantá-las, e permiti-las crescer em silêncio.
Nossos ancestrais nos ensinaram que a terra está sempre nos falando,
e que devemos ficar em silêncio para escutá-la.
Existem muitas vozes além das nossas.
Muitas vozes.
Só vamos escutá-las em silêncio.



"Neither Wolf nor Dog. On Forgotten Roads with an Indian Elder" - Kent Nerburnhttp